Foto: Noni Geiger 2001 |
Na cremação do Goebel, seu amigo, o arquiteto Jacó, colocou a mão no meu ombro e comentou inconsolável: “não vai haver outro igual”; constatação parecida à do Rodolfo, ao escrever que, apesar de toda pessoa ser insubstituível, Goebel é mais do que a maioria. E assim é pela combinação de características que conformavam uma personalidade absolutamente singular. Era generoso, desde a gorjeta extra para o garçom, até a disponibilidade para seus interlocutores. Era orgulhoso da amizade com o “Tom” (Jobim), o “Oscar” (Niemeyer), o “Rubem” (Braga) e muitos outros. Era também impulsivo, capaz de reações muitas vezes desproporcionais, mas nunca de todo infundadas. Era valentão. Cansou de xingar a mãe dos motoqueiros mais afoitos (e de peitá-los quando voltavam tirando satisfações). Alguns o achavam parecido com Walther Matthau. Talvez mais do que semelhança física, era o jeito gaiato de Goebel que sustentava essa comparação. Ele exercia a gaiatice com maestria. Se estivesse caminhando e conversando com alguém, e um grupo falastrão viesse logo atrás, era habitual relaxar o passo, deixando o grupo passar; praguejava então alguma coisa, e só depois retomava a conversa. Às vezes fazia isso, apontando para o céu, para “justificar” a parada repentina, fazendo com que os passantes olhassem todos para cima (desconfio que fazia essas coisas mesmo andando sozinho.). Desde quando o conheci, era rabugento e comicamente azarado (ou, o mais provável, fazia do azar algo cômico). Seu humor ia da fina ironia às histórias mais absurdamente escatológicas. Manifestava-se em causos, piadas, bordões (muitos!), caricaturas e apelidos, os mais hilários. Esses últimos, dava aos próximos, e não tão próximos, (muita gente até hoje não deve saber que teve um).
Se em algumas situações me pareceu autoritário, intransigente, repetitivo, pernóstico, e até ingênuo; no mais das vezes, eu o considerava sábio, condição que hoje teria dificuldade em enxergar em outra pessoa. Não era só pelo conhecimento enciclopédico, pela memória privilegiada ou pela rapidez nas piadas, nas ideias e nas soluções; mas também pela presença de espírito gigantesca, pela capacidade de apreensão fora do comum e por um sagaz entendimento da natureza humana. Além disso, Goebel também era íntegro, reto e direto, como seus trabalhos. Normalmente, essas características se revelam em pessoas diferentes e em situações diferentes. No Goebel, se manifestavam em abundância e com autenticidade desde a primeira conversa mais demorada.
Para os alunos que o aceitaram, foi um dedicado mestre. Certa vez ouvi (não sei de quem) que aprender com Goebel é como ter aula de guitarra com Jimi Hendrix. Também não sei o contexto exato desta afirmação, mas assim como seria difícil atinar Hendrix lecionando em uma situação formal de sala de aula, assim era com Goebel. Foi autodidata e se orgulhava de, por isso, ter escolhido seus próprios professores. Talvez por esta razão, seu didatismo fosse de natureza diferente da habitual. Não era um transmissor de matérias prontas ou um ‘ajeitador’ de layouts dos alunos, na base do “mais para cá, mais para lá”, como dizia. Com ele, não funcionava pedir comentários sobre um trabalho pronto ou resposta para uma pergunta pontual. Nada era pontual. Não estava interessado na pragmática imediatista e sim nas relações entre as coisas. Assim, o que funcionava, era ouvi-lo sem pressa. E para quem tivesse essa disponibilidade, além da aula de “guitarra”, aprendia sobre filmes, livros, músicas, por meio de uma sempre atordoante quantidade de referências. Aos seus alunos, interessava transmitir não a objetividade da resposta rápida (aprendida mais cedo ou mais tarde), mas aquela objetividade apoiada nas relações, nos paralelismos e nas conexões entre conceitos e coisas, base de qualquer conhecimento em design. Considerava que, no entendimento dessas relações, está a justificativa para um design menos camuflado na grandiloquência de estilos pessoais ou modismos e mais sustentado pelo conceito forte e pela inovação, ainda que sutil. Nesse sentido, suas “aulas” eram uma demonstração de como as coisas, sendo mais simples, seriam mais elegantes. Era-lhe importante atravessar a camada barulhenta das ideias prontas e clichês para revelar as estruturas subjacentes. Nesta escala elementar, na escala das coisas simples, estaria a verdadeira novidade do design. Não se tratava de mero conceito teórico, e sim de um princípio exercido com maestria na sua própria prática, ou melhor, proveniente dela.
Com todas as contradições que isso acarreta, foi um designer moderno por excelência. Simples, objetivo, metódico, preciso, alemão, suíço, ulmiano, mas brasileiro e cearense. Aqueles que enxergam no design dito racional, uma relação necessária com o clima frio e uma suposta sisudez e introspecção europeias, reivindicando um contraponto “quente” para um design genuinamente brasileiro, o trabalho e a pessoa de Goebel podem confundir. Quem o conheceu sabe que estava longe de qualquer sisudez ou introspecção. Nascido no nordeste, era também grande conhecedor de sua rica cultura; mesmo assim, não baseou seu trabalho nas raízes nordestinas. Escolheu suas referências por convicções projetuais e não pela sua personalidade ou por ideais nacionalistas. Aprovado em Ulm, não conseguiu bolsa para a família e não cursou a escola alemã, mas, ainda assim, tornou-se mais ulmiano que seus egressos. Acreditava que, se houvesse algo como design nacional, não seria por uma derivação direta de simbolismos e trejeitos estereotipados e sim, mais provavelmente, pelo modo particular como alguns grupos interpretam certos princípios universais de projeto, daí sua admiração e identificação com a HfG Ulm. Além disso, para quem vê o design racional como mera replicação de modelos pré-existentes, novamente a produção de Goebel é um contraponto. Todo bom design se revela pela capacidade de invenção, e nisso Goebel foi excepcional. Não lhe interessava a auto-expressão, e sim revelar um aspecto crucial que comunicasse o espírito do problema com que estava lidando (um cartaz, uma revista, uma exposição...). Isso acontecia não só pelo reconhecido rigor no uso dos recursos formais, mas também pela cuidadosa escolha dos signos (como gostava de chamar os elementos com que trabalhava) e pela engenhosidade e simplicidade com que programava os critérios para a sua articulação. Resultando em algo visivelmente derivado de uma programação, mas de grande interesse estético, reservado sobretudo ao observador atento, a quem surpreendia pelas pequenas, mas eloquentes, partículas de invenção. Nisto, nunca foi modesto, “Sou um homem de ideias” repetia com frequência. De fato, ideias e ideais. Comunista, moderno, modernista. Acreditava no design, e na ideia da escola que ajudou a criar. Talvez por isso tenha sido seu crítico ferrenho. Suas convicções de certo o prejudicaram em várias ocasiões, mas não era do seu feitio fazer concessões. Foi sobretudo um homem corajoso. Talvez sua maior grandeza foi ter tido coragem para viver a vida de acordo com suas convicções.
Apesar de cioso da correção nas informações sobre sua biografia (espumava com as frequentes referencias erradas) não se interessou em preservar seu passado, de modo que muitos dos trabalhos que o colocariam no lugar que lhe corresponde no Design, desapareceram em parte ou no todo. O que seria visto como displicência, na verdade, pode revelar uma profunda identificação com a ideia de projeto como antecipação do futuro (“pro.jeto”), distante assim de qualquer ideia de retorno ao passado. Infelizmente, o futuro lhe surpreendeu. A vitalidade de Goebel aos 79 anos nos fazia crer, que o inevitável destino de todo homem, mais do que “poderia”, “deveria” ter esperado mais um pouco. É duro quando uma personalidade assim, simplesmente, deixa de existir.
Texto de Luiz Arbex, ex-aluno e amigo, publicado no Facedbook em 20/12/2012 e no SINAL 466, por ocasião do falecimento de Goebel Weyne.